Nos termos da Constituição vigente, os
municípios possuem competência para instituir e cobrar o ISS sobre
serviços de qualquer natureza definidos em lei complementar, exceto os
de comunicação (que abrangem os de telecomunicação) e também os de transporte interestadual e intermunicipal, que estão sujeitos à incidência exclusiva do ICMS, de competência dos Estados.
São,
portanto, competências constitucionais distintas, estanques, exclusivas
e bem definidas, cujas normas definidoras das respectivas fronteiras
devem ser interpretadas de forma a que sejam evitados possíveis
conflitos, extrapolações e/ou bitributação por parte dos estados e
municípios.
Essas patologias, que o interprete e o aplicador da norma deve sempre buscar evitar, podem se dar pelas mais variadas formas. Nesta oportunidade, examinaremos uma delas.
Ao
definir os serviços de telecomunicação, a Lei Geral de Telecomunicações
( Lei 9.472, de 16 de junho de 1997) determina que eles são o conjunto
de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação, e que esta,
por sua vez, consiste na transmissão, emissão ou recepção, por fio,
radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo
eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens,
sons ou informações de qualquer natureza (artigo 60, parágrafo primeiro).
Portanto,
os serviços de telecomunicação correspondem à oferta a terceiros de
determinados meios (fio, radioeletricidade, meios óticos ou qualquer
outro processo eletromagnético) que tornam possível a atividade de
comunicação (transmissão, emissão ou recepção à distância de símbolos,
dados, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de
qualquer natureza).
Em outras palavras, para que haja atividade
tributada pelo ICMS, é necessário e suficiente que alguém, por meios
próprios, ou sobre os quais detenha direito de posse ou uso, preste a
terceiros serviço oneroso cujo objeto consista na oferta de transmissão,
emissão, geração, recepção, retransmissão, ou repetição de mensagens,
dados, ou sinais que o beneficiário do serviço pretenda sejam
transmitidos.
Daí resulta que o prestador do serviço de telecomunicação é aquele que mantém em funcionamento os meios de transmissão de imagem, som e sinais, enquanto seu cliente
é aquele que o remunera para se utilizar de tais equipamentos com o
objetivo de fazer chegar a outrem a imagem, o som, o sinal ou a
informação que ele tem a possibilidade de emitir. A atividade de um não
se confunde com a do outro.
Há situações, no entanto, em que,
embora haja atividade de telecomunicação (captação e transmissão de
sinais), ela é realizada com o único objetivo de possibilitar a prestação
de outros serviços. É o que ocorre, por exemplo, com quem presta
serviços de processamento de dados que são por ele coletados e
transmitidos de um ponto ao outro por meio da utilização dos meios de
transmissão acima referidos a ele pertencentes.
Essas atividades
secundárias (transmissão de dados de um ponto a outro) são, na
realidade, meras atividades-meio exercidas com o único objetivo de
propiciar o exercício da atividade-fim, a prestação desses outros
serviços (processamento de dados), não podendo, portanto, ser relevantes
para a definição do tributo que incidirá sobre a atividade. Nesse
sentido, Aires F. Barreto:
"Alvo de tributação é o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto. Não as suas etapas, passos ou tarefas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. Não a ação desenvolvida como requisito ou condição do facere (fato jurídico posto no núcleo da hipótese de incidência do tributo).
As etapas, passos, processos, tarefas, obras, são feitas, promovidas, realizadas "para" o próprio prestador e não "para terceiros", ainda que estes o aproveitem (já que, aproveitando-se do resultado final, beneficiam-se das condições que o tornaram possível).
(...)
Para essas atividades-meio não há cobrança de preço; mas, nem mesmo quando, em certos casos, para elas é destacado preço, essas "ações-meio" se transformam em "ações-fim"."[1]
E, também, Roque Antônio Carrazza:
“Na
realidade, o ICMS-Transporte, o ICMS-Comunicação e o ISS somente serão
devidos quando, respectivamente, o transporte transmunicipal, a
comunicação ou o outro serviço resultarem - isto é, forem objeto - de
contrato oneroso firmado entre um prestador e um tomador.
(...)
Conforme corretamente aduz Edison Aurélio Corazza, "somente a análise da contratação, do querer do tomador e do prestador de serviços, nos permite identificar quais dos diferentes impostos incidem sobre a prestação realizada ou a se realizar".
(...)
Conforme corretamente aduz Edison Aurélio Corazza, "somente a análise da contratação, do querer do tomador e do prestador de serviços, nos permite identificar quais dos diferentes impostos incidem sobre a prestação realizada ou a se realizar".
E continua o agora Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP:
"O fato de haver transporte ou comunicação somente será determinante da incidência do imposto estadual (ICMS) se forem objeto (fim, telos) do contrato, do negócio firmado entre tomador e prestador do serviço. Se a vontade dos contratantes for a de serviço diverso, ainda que exista transporte ou comunicação, a tributação possível será a do imposto municipal".
(...)
Notamos, pois, ser necessária a detida análise do contrato de prestação de serviços para saber se há tributo devido e, em caso afirmativo, qual deles: o ICMS-Transporte, o ICMS- Comunicação ou o ISS.
(...)
É o fim (telos) pretendido pelas partes contratantes que, refletindo o próprio objeto do negócio jurídico, determinará, quando for o caso, tal incidência.
Um dado, porém, é incontroverso: de per si, o fato físico comunicação é irrelevante para determinar a incidência do ICMS. A comunicação - tornamos a insistir - somente a determinará se for o objeto de um contrato oneroso firmado entre-as partes interessadas.”[2]
Nessa direção, também vai a jurisprudência do STF:
"Tributário. Imposto Sobre Serviços. Atividades Bancárias. Custódia de títulos, elaboração de cadastro, expediente. Serviços sem autonomia própria, inseparáveis da atividade financeira, que não suscitam o imposto municipal sobre serviços. Exceção consignada na própria lei municipal para as instituições financeiras." (Recurso Extraordinário - RE n° 97.804/SP, Segunda Turma, relator ministro Décio Miranda, Revista Trimestral de Jurisprudência - RTJ nº 111/696).
E do STJ:
“Processual civil. Tributário. ISS. Competência. Município local da prestação do serviço. Desenvolvimento da atividade fim.
4. A jurisprudência do STJ afirma que, "envolvendo a atividade, bens e serviços, a realidade econômica que interessa ao Direito Tributário impõe aferir o desígnio final pretendido pelo sujeito passivo tributário, distinguindo-se a atividade meio, da atividade fim, esta última o substrato da hipótese de incidência." (REsp 805.317, rel. p/ acórdão min. Luiz Fux, DJ 17/8/2006). Agravo regimental improvido.”
A
interpretação exposta acima é reforçada, ainda, pelo fato de que a Lei
Complementar 116/2003, que regula o ISS de forma nacional: (i) determina
que "ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela
mencionados não ficam sujeitos ao ICMS"; e (ii) ao listar o serviço de
processamento de dados, não faz qualquer ressalva quanto à incidência do
ICMS sobre atividades preparatórias a tal serviço. Mas, além dos
argumentos expostos, há outro aspecto que também impede a incidência do
ICMS nessas circunstâncias.
É uníssono na doutrina e na
jurisprudência que a prestação de "serviços de comunicação" pressupõe a
existência de mensagem alheia a ser transmitida, e jamais própria. Do
contrário, não haverá serviço de comunicação, mas mera atividade de
comunicação, não alcançada pela incidência do imposto. De fato, se
alguém transmite mensagem própria, não poderá estar exercendo atividade
tributada pelo imposto, na medida em que ninguém presta serviços a si
mesmo. Nesse sentido, destacamos a lição de Paulo de Barros Carvalho:
“Do que foi dito infere-se que a comunicação pode ocorrer de dois modos: (1) de forma pessoal, havendo transmissão de mensagem própria; e (2) com intermediação, em que há transmissão da mensagem de terceiros. Apenas na segunda hipótese incidirá o ICMS, pois como ninguém presta serviço a si mesmo, unicamente se o casal transmissor configurar pessoa diversa do emissor é que teremos a prestação de serviço comunicacional.”[4]
Quando
o prestador de serviços colhe por meios próprios os dados que serão
objeto do seu serviço e, após realizar um processamento inicial desses
dados, transmite-os, também por meios próprios, de uma para outro dos
seus servidores, de forma a que as referidas informações sejam
utilizadas na elaboração dos laudos ou estudos a ele encomendados, a
serem disponibilizados ao cliente, não há que se falar nessas hipóteses
de “mensagem de terceiro” sendo transmitida.
Há apenas dados captados,
transmitidos e processados pelo próprio prestador de serviços,
tornando-se, assim, ausente um dos pressupostos básicos para a
configuração de serviço de telecomunicação: a mensagem ser pertencente a
terceiros.
É verdade que o Ministério das Comunicações expediu a
Portaria 455, de 18 de setembro de 1997, que aprovou a Norma 13/1997
cujo teor transcrevo parcialmente abaixo:
“4. Definições
4.1 Para os fins desta norma, são adotadas as seguintes definições:
a) Serviço Limitado: Serviço de telecomunicações destinado ao uso próprio do executante ou à prestação a terceiros, desde que sejam estes uma mesma pessoa, ou grupo de pessoas naturais ou jurídicas, caracterizado pela realização de atividade específica;
(...)
c) Serviço Limitado Especializado: Serviço Limitado, telefônico, telegráfico, de transmissão de dados ou qualquer outra forma de telecomunicações, destinado à prestação a terceiros, desde que sejam estes uma mesma pessoa ou grupo de pessoas naturais ou jurídicas, caracterizado pela realização de atividade específica”.
Poder-se-ia
alegar, com base nessa, que o processador de dados que exerce
atividades de telecomunicação para transmitir dados por ele coletados de
um servidor a outro, ainda que ambos fossem a ele pertencentes,
necessitaria de autorização para a prestação de Serviço Limitado
Especializado, e que, portanto, tais atividades deveriam ser
consideradas "serviço de telecomunicações" (Norma 13/1997, item 4.1, a)
"destinado a terceiros" (Norma 13/1997, item 4.1, c) pela própria
Anatel.
É verdade que há diversos precedentes do STJ em que o
referido tribunal se fundamentou no direito regulatório para definir o
que vem a ser serviços de telecomunicações para fins de incidência do
ICMS (Embargos de Divergência em Recurso Especial – EREsp 456.650/PR,
ministro relator José Delgado, 1ª Seção, em 11/05/2005, DJ de
20/03/2006, p. 181; REsp 677.108, ministro Castro Meira, 2ª Turma, em
28/10/2008, DJ de 01/12/2008; REsp 108.8913/SP, ministro Luiz Fux, 1ª
Turma, em 16/04/2009, DJ de 25/05/2009).
Não há, contudo, nenhum
caso em que o STJ tenha se fundamentado no direito regulatório para
conferir a natureza de “serviço de telecomunicação” a uma atividade que
sequer tenha a natureza de prestação de serviço.
Do contrário,
estar-se-ia dando ao Ministério das Comunicações ou à Anatel competência
tributária, o que, obviamente, não encontraria amparo nem na
Constituição nem no Código Tributário Nacional.
Portanto, e já
concluindo, se a atividade de telecomunicação é realizada em benefício
próprio, com o único objetivo de possibilitar a prestação de serviços de
outra natureza tributáveis pelo ISS (v.g., processamento de dados), não
haverá que se falar na incidência do ICMS. Não haverá, na hipótese, a
prestação de serviços de telecomunicação, mas mera atividade-meio, que
não poderá ser considerada de forma individualizada para fins de
tributação.
Por outro lado, a prestação dos "serviços de
comunicação" pressupõe a existência de mensagem alheia a ser
transmitida, e jamais própria, como é o caso de quem presta serviços na
forma acima mencionada. Essa é a única interpretação que evitará os
possíveis conflitos, extrapolações e/ou bitributação por parte dos
estados e municípios, a que me referi no início deste artigo.
[1] Aires F. Barreto, "ISS – ATIVIDADE-MEIO E SERVIÇO-FIM", Revista Dialética de Direito Tributário n° 5, p. 72, Dialética, 1996
[2] Roque Antônio Carrazza, "ICMS", págs. 184 a 185, Editora Melhoramentos, 14ª Edição, 2009
[3] Agravo Regimental no Recurso Especial – AgRg no REsp n° 1251753/ES, Segunda Turma, Relator Ministro Humberto Martins, Data do Julgamento: 27.09.2011; DJe: 04.10.2011
[4] Paulo de Barros Carvalho. Não-incidência do ICMS na atividade dos provedores de acesso à Internet. RDDT n° 73, out/01, pp. 97/104
[2] Roque Antônio Carrazza, "ICMS", págs. 184 a 185, Editora Melhoramentos, 14ª Edição, 2009
[3] Agravo Regimental no Recurso Especial – AgRg no REsp n° 1251753/ES, Segunda Turma, Relator Ministro Humberto Martins, Data do Julgamento: 27.09.2011; DJe: 04.10.2011
[4] Paulo de Barros Carvalho. Não-incidência do ICMS na atividade dos provedores de acesso à Internet. RDDT n° 73, out/01, pp. 97/104
Gustavo Brigagão é
sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados, secretário-geral da
Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de
Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara
Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.
Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2013
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